O batom, o linchamento e o STF que esqueceu a Constituição
O artigo “Juízes carrascos, advogados malabaristas e o batom na estátua”, assinado pelo advogado e jurista André Marsiglia, publicado no portal Poder360, é um daqueles textos que merecem ser não apenas lidos, mas amplamente repercutidos — especialmente por quem ainda insiste em acreditar que o Supremo Tribunal Federal deve julgar com base na lei, e não com base no espetáculo.
Marsiglia, conhecido por sua defesa intransigente da liberdade de expressão, mergulha no caso que ele mesmo define como “a crônica de um linchamento”: a condenação de uma cabeleireira, envolvida nos atos de vandalismo do 8 de janeiro, a 14 anos de prisão — por ter passado batom em uma estátua da Praça dos Três Poderes. Sim, 14 anos. Pelo batom.
O caso não é isolado — é um símbolo. Um retrato perfeito da desproporcionalidade com que o STF tem lidado com os réus desses processos, transformando vândalos em golpistas, e protestos desorganizados em articulações de tomada de poder. Como diz o jurista, o crime de que a acusada é tida como culpada é aquilo que no direito se chama de “crime impossível”. Porque, nas palavras de Marsiglia, ela e aquelas pessoas todas não tinham a menor condição de tomar o poder, ainda que assim o desejassem.
A crítica é cirúrgica: “Os juízes têm sido carrascos, os advogados têm feito malabarismos e a Justiça tem se comportado como um teatro onde a toga virou figurino e a pena, coreografia.” O artigo traz o alerta de que a balança da Justiça está sendo usada para pesar o clamor popular, não as provas. E, em vez de defender a ordem jurídica, o tribunal vem impondo sentenças que beiram o delírio punitivista, desproporcionais até se comparadas com penas aplicadas a crimes como homicídios ou estupros.
Marsiglia também denuncia o constrangimento dos advogados que precisam, em pleno século XXI, “provar o óbvio”: que uma mulher que pintou com batom uma estátua não atentou contra o Estado Democrático de Direito. A inversão de valores é brutal: não é mais o acusador quem deve provar o crime — é o réu quem precisa provar que não é um conspirador, mesmo que tudo o que tenha em mãos seja um batom e um celular.
O texto é um grito sereno, mas firme, contra esse ambiente tóxico de justiçamento institucional que se instalou na mais alta Corte do país. Marsiglia afirma que há ali um desejo de “exemplo público”, e que os réus não estão sendo julgados por seus atos, mas pelo que simbolizam para o discurso político em voga.
E não está sozinho em suas críticas. Cada vez mais juristas, advogados e comentaristas jurídicos vêm alertando para a escalada de decisões autoritárias, para o uso abusivo da delação como única “prova”, para o atropelo do devido processo legal. Mas poucos escrevem com a coragem e a clareza com que André Marsiglia escreve.
Seu artigo é mais que uma opinião: é um chamado à lucidez, um apelo por Justiça de verdade, e não de ocasião.
Porque se a Justiça começa a punir mais severamente um batom na estátua do que um ataque à Constituição, talvez quem esteja cometendo o verdadeiro atentado não seja quem pintou — mas quem julga.