Anistia é o caminho para a pacificação
Todos sabem que, desde 2018 – talvez até antes –, o Brasil está polarizado. O país vive em tensão permanente, enraivecido, dividido entre extremos que não se suportam, que se odeiam mutuamente.
É o diagnóstico mais consensual da política nacional. A unanimidade vem acompanhada de uma outra constatação óbvia: é preciso pacificar. O problema é o elo entre essas duas frases — ou melhor, a ausência dele. Todos sabem também o que está errado. Todos dizem querer resolver. Mas ninguém oferece o remédio. E quando o remédio é sugerido, ele exige algo que Brasília parece desconhecer: renúncia, humildade, senso de limite — e, principalmente, justiça.
A palavra que explica esse abismo, esse esgarçamento institucional, essa revolta mal compreendida que culminou no 8 de janeiro, é uma só: impunidade.
Não se trata aqui de romantizar o vandalismo, nem de justificar quebra-quebra com discursos de indignação. Quem destrói patrimônio público deve, sim, responder por seus atos. Mas é preciso perguntar com honestidade: como chegamos a esse ponto? O que faz com que milhares de pessoas se sintam traídas, enganadas, desamparadas ao ponto de enxergar em atos de destruição uma forma de protesto legítimo?
O marco zero dessa trajetória absurda foi, sem dúvida, a decisão do ministro Alexandre de Moraes de impedir a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal. Alegando uma suposta proximidade pessoal com Jair Bolsonaro, Moraes atropelou uma prerrogativa constitucional do presidente da República — nomear livremente seus auxiliares diretos, algo tão elementar quanto incontestável. Desde quando afinidade política é impeditivo para nomeações? Prefeitos, governadores e presidentes nomeiam aliados. Sempre foi assim. O problema não foi o gesto isolado. Foi o precedente. Ali se abriu a porta para uma escalada de interferências judiciais que dissolveram a fronteira entre os Poderes.
E é justo reconhecer: ao recuar diante daquela decisão, Bolsonaro também cometeu um erro estratégico. Sua submissão abriu espaço para que o Supremo testasse — e depois ampliasse — os próprios limites. A partir dali, veio a escalada: decisões cada vez mais ousadas, abrangentes, invasivas.
Junto com isso, o que se viu foi o avanço progressivo sobre a liberdade de expressão. A censura de veículos conservadores, o sufocamento de vozes dissonantes nas redes sociais, a ameaça constante de controle sobre as plataformas digitais — tudo isso reforçado por um coluio tácito com o governo Lula — formaram o cenário perfeito para institucionalizar o silêncio seletivo. Porque liberdade de expressão, no Brasil, virou um conceito partidário: quando exercida à esquerda, é direito sagrado. Quando exercida à direita, é crime em gestação.
A grande imprensa, num primeiro momento, aplaudiu. Afinal, o autoritarismo só parecia atingir seus adversários ideológicos. Quando, porém, os tentáculos judiciais começaram a sufocar princípios constitucionais básicos, os editoriais mudaram de tom. Mas aí já era tarde. Como dizem os antigos: é fácil soltar o gênio da garrafa — difícil é fazê-lo voltar.
Vieram então decisões em série, todas apontando para a mesma direção: a corrosão da confiança institucional. A “descondenação” de Lula, construída sobre uma filigrana processual, não foi entendida pelo brasileiro comum como um ato de justiça, mas como uma manobra. Afinal, o ex-presidente havia sido condenado em três instâncias — e não absolvido. Foi reabilitado, não inocentado. Para muitos, a operação foi simples: retirar Bolsonaro exigia devolver Lula.
Durante a campanha de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral atuou com zelo incomum — mas apenas de um lado. A censura seletiva, a perseguição a conteúdos, a desigualdade de tratamento entre os candidatos consolidaram, para uma parcela da população, a sensação de que o jogo não era apenas duro — era manipulado.
O golpe não aconteceu. As urnas não foram comprovadamente fraudadas. Mas a revolta, essa sim, foi real — construída não sobre fake news, mas sobre a percepção, repetida, sistemática, de que a lei no Brasil não é para todos. Que há cidadãos de toga com licença para tudo, enquanto o cidadão comum paga caro — e, às vezes, com anos de cadeia — por desobedecer o roteiro.
A mesma Suprema Corte que se tornou implacável com os réus do 8 de janeiro — condenando pequenos transgressores a penas de até 17 anos — é a que anula condenações da Lava Jato, livra da cadeia delatores que devolveram centenas de milhões de reais, e reabilita políticos cuja biografia é típica de inquérito criminal.
É esse o paradoxo que alimenta a polarização: não é o inconformismo com a eleição em si — é o inconformismo com um sistema que absolve corruptos e pune revoltados. Que persegue quem xinga ministro, mas ignora quem saqueia ministério.
A esquerda, que um dia vestiu preto para gritar “Fora Collor” e pintou a cara contra a impunidade, hoje se cala diante de tudo isso. Perdeu o direito à indignação quando escolheu o cinismo como doutrina.
E tudo isso desembocou no 8 de janeiro — uma explosão de inconformismo. Centenas foram às ruas, mas milhões estavam em casa assistindo, talvez em silêncio, talvez com vergonha, mas certamente compartilhando o mesmo sentimento de revolta.
Não é exagero dizer que muitos se viram, ainda que simbolicamente, representados por aquela depredação. Não por prazer, mas por desespero. Por não saber mais como protestar diante de um país em que os corruptos voltam ao poder pela porta da frente, absolvidos pelo sistema que deveriam temer.
A polarização não nasceu de Bolsonaro. Nem será resolvida por Lula. Ela nasceu do desequilíbrio entre poder e responsabilidade, entre autoridade e coerência. Nasceu do momento em que os guardiões da Constituição decidiram moldá-la à sua imagem e semelhança — e não à do povo.
No Brasil de hoje, o crime compensa — desde que seja bem assessorado juridicamente. O que não compensa é confiar nas instituições esperando que elas ajam com isenção.
O 8 de janeiro foi bárbaro, sim. Mas foi, antes de tudo, simbólico: a implosão visível de uma confiança que já estava em ruínas. E se o país quer mesmo pacificação, que comece pelo único caminho possível: o fim da impunidade. Porque sem justiça — não a teatral, mas a verdadeira — não há paz. Só silêncio armado.
Pacificação não é esquecer. Também não é se vingar. É reconhecer que o país, neste ponto da história, exige um gesto raro: grandeza. Grandeza dos Poderes. Grandeza das instituições. Grandeza daqueles que têm caneta, microfone e toga. O que o Brasil precisa não é de revanche, mas de um conserto nacional — e a palavra aqui vale nos dois sentidos: um acordo político e um reparo moral.
Sem esse conserto, viveremos numa gangorra vingativa. Hoje, um lado prende. Amanhã, o outro persegue. Hoje, cala-se a direita. Amanhã, censura-se a esquerda. E assim o país vai afundando, revezando opressores, mas nunca corrigindo o sistema.
Essa reconstrução nacional talvez passe, inevitavelmente, por um gesto de clemência. Sim, uma anistia.
Porque pensar, por mais fantasioso que seja o pensamento, não é crime. Juristas respeitáveis lembram que imaginar um golpe, desejar um desfecho, ou até mesmo conspirar em voz baixa, sem atos concretos, não configura delito algum. O Brasil está punindo intenções — e isso, além de perigoso, é insustentável juridicamente.
Que se puna quem quebrou e depredou. Mas com proporcionalidade. Com decência. Com respeito à hierarquia das penas. O mesmo tribunal que hoje condena cabeleireiras a 17 anos de prisão por invadir um prédio público é aquele que absolve, anula ou solta ladrões que saquearam bilhões — e com eles, a saúde, a educação e a segurança dos brasileiros.
Não há justiça onde o corrupto é tratado com condescendência e o revoltado com crueldade.
Se quisermos, de fato, pacificar o país, precisamos reconhecer que a impunidade seletiva gerou a revolta, e que o remédio para a polarização não é endurecer o chicote — é tirar os olhos da vingança e devolver a razão à Justiça.
Porque, do contrário, seguiremos presos à nossa tragédia cíclica: um país onde pensar virou crime e roubar, estratégia de carreira.
2 comentários
Olavo Arsenio Fank · 27/04/2025 às 17:11
Sensacional a síntese. Parabéns.
HARI PYDD · 24/04/2025 às 18:34
Não temos saída. Os que podem mudar (Justiça e Congresso) não tem a mínima intenção, o povo desanimado com medo de se expressar, forças militares coniventes. Só resta ver a banda passar.